
Tecelões da esperança: uma história de muitas mãos
Cada paciente que atendo carrega o potencial de ser um agente de mudança, assim como Rosa se tornou
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Em 1985, o Hospital João XXIII, em Belo Horizonte, se tornou o epicentro de uma revolução silenciosa no tratamento do HIV/AIDS. Como médico recém-contratado pela Fundação Hospitalar de Minas Gerais (Fhemig), testemunhei o nascimento da primeira unidade de Aids do estado, onde conheci um grupo extraordinário de jovens clínicos e estudantes de medicina. Destaco aqui, Luiz Antônio Loures, clínico brilhante e de temperamento aguerrido e Marco Antônio de Ávila Vitória, na época, estudante do quarto ano de medicina da UFMG.
Naqueles corredores, durante quase dois anos e entre 25 pacientes pioneiros, aprendemos mais que medicina - aprendemos sobre humildade e humanidade. O professor Dirceu Greco, com sua experiência e visão progressista, nos dava e e ensinava que o cuidado deveria ir além dos protocolos, que eram poucos e frágeis naquela época. Suas orientações foram fundamentais para moldar uma abordagem que mais tarde se tornaria referência mundial.
Luiz Antônio e Marco Vitória já demonstravam uma compreensão única sobre a complexidade da epidemia. Não era apenas sobre tratar sintomas, mas sobre entender o contexto social, o sofrimento, as vulnerabilidades e, principalmente, os direitos humanos dos pacientes. O professor Dirceu Greco insistia nessa visão integral e ética, que anos depois se provaria revolucionária.
Anos mais tarde, nossos caminhos profissionais se entrelaçaram novamente. Marco e eu trabalhamos na rede pública de saúde no cuidado de pessoas com HIV e compartilhamos um consultório, enquanto Luiz Antônio seguia a própria trajetória. A parceria deles se fortaleceria ainda mais quando ambos aram pelo programa estadual e nacional de controle de DST/AIDS e chegaram à Organização Mundial da Saúde (OMS) em Genebra, onde transformariam a experiência brasileira em política global.
Em 2003, quando Marco chegou à OMS, encontrou Luiz Antonio como aliado crucial. Juntos, enfrentaram um certo ceticismo da própria organização, que resistia à ideia de tratamento em larga escala nos países em desenvolvimento. Naquela época, o Brasil tinha apenas 100 mil pessoas em tratamento, parte das 300 mil em todo o mundo. Hoje, graças em parte à persistência deles, são mais de 30 milhões, principalmente na África.
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É neste ponto que nossa história se conecta com Rosa Francisco Pedro, em Angola. Enquanto Marco e Luiz Antônio revolucionavam com políticas globais, Rosa enfrentava a própria batalha. Aos 33 anos, seu diagnóstico positivo para HIV poderia ter sido apenas mais uma estatística. Em vez disso, tornou-se o início de uma transformação extraordinária.
Rosa, hoje aos 54 anos, lidera a MWENHO, associação que se tornou farol de esperança para mulheres vivendo com HIV em Angola. Seu trabalho vai além do e médico - ela construiu uma rede de solidariedade que ecoa os princípios que aprendemos no João XXIII: cuidado integral, direitos humanos e empoderamento.
Em 2004, quando Rosa cofundou a MWENHO, ela não sabia que sua iniciativa se alinhava perfeitamente com as políticas que Marco e Luiz Antônio defendiam na OMS. Enquanto eles lutavam por o universal ao tratamento, Rosa construía as bases comunitárias necessárias para que esse tratamento fosse efetivo.
O trabalho de Rosa é um exemplo vivo do impacto dessas políticas. Ela conecta sete países de língua portuguesa, criando pontes entre comunidades que enfrentam desafios semelhantes. Seu ativismo ressoa com a visão que o professor Greco nos transmitiu: a importância da educação, do empoderamento e da ação comunitária.
A MWENHO tornou-se mais que uma associação - é um movimento que transforma vidas. Ela organiza grupos de apoio, oficinas educativas e campanhas de conscientização. Seu trabalho ecoa aquelas primeiras lições do João XXIII: cada paciente é uma pessoa completa, com direitos, sonhos e potencial para transformar sua realidade.
Hoje, enquanto atendo em meu consultório, em Minas, vejo como essas histórias se entrelaçam. Os ensinamentos do professor Greco continuam vivos em cada consulta. O trabalho pioneiro de Marco e Luiz Antônio na OMS abriu portas para que ativistas como Rosa pudessem fortalecer suas comunidades.
A jornada que começou com 25 pacientes no João XXIII hoje beneficia milhões. O modelo brasileiro, defendido por Marco Vitória, Luiz Antônio e tantos outros, provou que tratar e prevenir são indissociáveis. Rosa, em Angola, demonstra diariamente como esse modelo pode ser adaptado e fortalecido a partir do engajamento comunitário.
São histórias de coragem, persistência e transformação. Do Hospital João XXIII à OMS, de Belo Horizonte a Angola, seguimos construindo pontes. Quando unimos forças, podemos transformar desafios em esperança e vida.
Cada dia em meu consultório, onde atendo ainda hoje os pacientes que me foram referenciados pelo Marco Vitória quando foi para a OMS, tenho orgulho de ter vivido essa história. Cada paciente que atendo carrega o potencial de ser um agente de mudança, assim como Rosa se tornou. É uma história que continua sendo escrita, página por página, consulta por consulta, vida por vida.
São histórias que se entrelaçam no tempo e no espaço, mostrando que o cuidado em saúde não conhece fronteiras. Do Hospital João XXIII à OMS, de Angola a Belo Horizonte, seguimos construindo um mundo onde o tratamento do HIV não é privilégio, mas direito.
As opiniões expressas neste texto são de responsabilidade exclusiva do(a) autor(a) e não refletem, necessariamente, o posicionamento e a visão do Estado de Minas sobre o tema.