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Ary Quintella
Ary Quintella, diplomata de carreira, escreve quinzenalmente no Estado de Minas. Publicou, em novembro de 2024, o livro de ensaios "Geografia do tempo"
Ary Quintella

Batuque na cozinha

Dois outros elementos culturais brasileiros seguiam Edson Arantes do Nascimento, em termos de popularidade lá fora

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Quando Pelé se despediu de nós, em 29 de dezembro de 2022, não ficamos de luto apenas porque um ser humano, e maior futebolista de todos os tempos, falecera. Com a sua partida, desaparecera aquele que fora o esteio central da imagem mais positiva do Brasil no mundo, que ainda é o futebol.


Morando no exterior criança, adolescente e ao longo da minha carreira profissional, sempre fiquei impressionado com o quanto os estrangeiros associam o nome do Brasil ao do jogador. Inúmeras vezes aconteceu, nos lugares mais distantes, de eu ouvir, ao me apresentar como brasileiro: “Ah! Brasil! A terra do Pelé”. Em 2020, quando apresentei credenciais como embaixador do Brasil ao rei da Malásia, o tema da conversa entre nós foi inteiramente sobre o Rei Pelé. Preocupava-se o monarca com o estado de saúde daquele que, por ser o soberano do futebol mundial, era o rei do Brasil.


Acredito não haver muitos outros casos de uma pessoa simbolizar sozinha, aos olhos externos, o seu país inteiro. Dois outros elementos culturais brasileiros seguiam Edson Arantes do Nascimento, em termos de popularidade lá fora, enquanto eu crescia e me tornava adulto: algumas novelas de televisão e a música. Em Luanda, existiu durante vinte anos aquele que foi o maior mercado ao ar livre de toda a África. Seu nome era “Roque Santeiro”. Algumas vezes, em táxis em diversos países do Sul Global, motoristas me disseram: “Lá em casa, todos assistimos à Escrava Isaura´”.


No final de abril, testemunhei a dimensão do impacto que pode causar a música brasileira, com a vinda a Luanda de Martinho da Vila. Poucos dias depois de eu chegar, no final de fevereiro, o primeiro casal angolano que minha mulher e eu convidamos para a casa comentara que o músico estava por chegar. Acrescentaram, os dois: “Ele é muito querido aqui”. Mal sabíamos nós ser isso um eufemismo.
No dia do seu desembarque em Luanda, Martinho da Vila, sua mulher, Cleo Ferreira, três de seus filhos e membros da sua equipe jantaram conosco. Vários amigos angolanos vieram com ele. Recebê-lo em casa foi, para nós, algo emocionante. E não somente para nós. Ao longo da noite, todos os convidados quiseram uma fotografia com o cantor, que aceitou a situação com grande simplicidade.


Figura cultural mítica mais ível na forma de interagir com os outros, eu nunca vi. No entanto, ele chegara do Brasil na manhã daquele mesmo dia, seu hotel era longe da nossa casa, ele devia estar bem cansado. Se estava, não deixou transparecer. Conversou, riu, deixou-se fotografar, abraçar, contou histórias de sua relação com Angola, anterior mesmo à independência do país, já que aqui veio pela primeira vez em 1972.


O seu show, dois dias depois, foi propriamente apocalíptico. Era véspera do feriado de primeiro de maio, que caiu na quinta-feira, e sexta-feira seria feriado também. No entanto, lá estavam milhares de pessoas. Martinho da Vila pisou no palco e já foi ovacionado. Todos se levantaram para filmá-lo ou fotografá-lo. O público conhecia suas músicas, cantava com ele. O carisma, aos 87 anos, continua intacto. Ele rememorou suas relações com alguns amigos angolanos; nem todos eram famosos ou ilustres, o que tornava a narrativa mais cativante.


Uma canção que eu não conhecia despertou meu interesse, como demonstração de internacionalização de um produto cultural. Martinho da Vila comentou de sua amizade com o poeta e dramaturgo Manuel Rui, autor da letra do hino nacional angolano. Mencionou que uma de suas composições, “À volta da fogueira”, é inspirada em um poema de Manuel Rui, “Os meninos de Huambo”. O mesmo poema recebeu também duas outras versões musicais, uma pelo artista angolano Ruy Mingas e outra pelo português Paulo de Carvalho.


O espetáculo foi aberto com apresentação de Eduardo Paim, ninguém menos do que o pai da kizomba. Uma amiga brasileira havia nos falado sobre esse eletrizante ritmo angolano. Eduardo Paim, ele próprio uma lenda viva, cantou e tocou o keytar durante uma hora, em uma atmosfera frenética, empolgante, fazendo-nos conhecer composições suas que eu viria a descobrir depois serem clássicos angolanos, como “A minha vizinha” e “São saudades”.


Entrevistados antes do show por um canal de televisão, minha mulher e eu lembramos à jornalista que crescer no Brasil significa ir acompanhando a carreira musical de ídolos como Martinho da Vila, que ele faz parte da vida pessoal de todos nós brasileiros. Na noite seguinte, a presença do artista brasileiro em Luanda ocupou longo trecho do principal telejornal do país.


O afeto de décadas entre o artista e o público angolano não é um feito banal, se pensarmos no poder global da indústria de entretenimento americana. Na mesma semana, Lady Gaga foi levada ao Rio de Janeiro, e dois milhões de pessoas compareceram para ouvi-la na praia de Copacabana. É uma ironia que a maior potência militar do planeta seja também a de “poder brando” mais efetivo. Não é porém uma ironia inédita. Luís XIV e Napoleão desenvolveram, cada um em sua era, políticas de agressão militar aos países vizinhos, enquanto a cultura sa ocupava, paradoxalmente, a posição de maior prestígio e influência sobre o resto da Europa.


Na manhã seguinte, cedo, Martinho da Vila viajou para Maputo, levando com ele sua alegria, sua generosidade. Peguei-me cantarolando “Canta, canta minha gente... deixa a tristeza pra lá… canta forte, canta alto… que a vida vai melhorar”. Tendo crescido ouvindo essa canção, e tantas outras do compositor, sinto ser ele um elemento-chave, como é o Pelé, da noção que faço de mim mesmo como brasileiro.

* O embaixador Ary Quintella escreve quinzenalmente para o Estado de Minas. Publicou, em novembro de 2024, o livro “Geografia do tempo”.

As opiniões expressas neste texto são de responsabilidade exclusiva do(a) autor(a) e não refletem, necessariamente, o posicionamento e a visão do Estado de Minas sobre o tema.

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